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A CULPA É DO MORDOMO

JANUÁRIO, Sérgio S.

Mestre em Sociologia Política

 

A culpa é do mordomo! José Roberto, o mordomo.

Um assassinato. Sangue com cheiro e sangria recentes. Vestígios de luta: vidros quebrados, cadeiras caídas, móveis arrastados. Da porta da casa se vê, primeiro, um pé sem sapatos que inaugura a sensação de um corpo sem movimento, inepto. Os olhos abertos, sem luz, a olhar para o nada. Dali não haverá reflexo de vida, de sentido das coisas. O mundo fora daquele corpo não existe mais. O tempo nosso já não é mais compartilhado. Daqui para frente eu sigo, ele para. Não há mais sequencia dali em diante porque o tempo ficou parado para ele e eu sigo bebendo o sacral do perpétuo até meu próprio corpo ficar sem reflexo.

Um assassinato e a culpa, por falta de culpado, é do mordomo.

José Roberto, o mordomo, leva seu carro para abastecer como se fugisse de sua própria condição de ser culpado pelos erros que acontecem no chão em que pisa. E, sem misericórdia angelical, se vê desprotegido da salvação divina. Olha para o posto de abastecimento e lê mais um aumento do preços da gasolina. Abre sua carteira de couro que ganhou de presente, observa as notas e pede para abastecer pelo limite da cédula que tem. Os últimos cinquenta reais se vão!

Com o olhar na nota, procurando garantias de pagamento, o frentista faz seu trabalho. Pronto; em poucos instantes o abastecimento é concluído! José liga o rádio e ouve o Presidente da República protestar, como se tivesse sua própria indignação, que o Presidente da fornecedora de combustíveis seria o culpado; que a forma de se estabelecer os valores da gasolina eram coisas feitas às escondidas, na calada da noite, como um torpedo lançado contra um navio.

A seguir, o apresentador da rádio diz que não há submarinos a atacar nossa armada e que não houve disparo de qualquer míssil. Que o preço dos combustíveis é uma fórmula feita à luz do dia, aceita e mantida. É como se a gasolina fosse exportada para o Canadá: quanto seria o valor do combustível se o que fazemos aqui fosse vendido para um canadense? Isso levaria em conta o valor do petróleo em dólares e a relação entre o valor do Real e o valor do Dólar. Conta simples: para a Petrobrás é o canadense que vai comprar a gasolina.

José Roberto é brasileiro, nascido em família pobre, com graduação em uma Universidade que se diz grande, mas que não o ensinou a escrever com ousadia, ler como hábito e interpretar com facilidade. Seu salário, contado o que tem para comprar pão, carne e arroz, não chega ao final do mês sem que ele faça trabalhos extras.

Ele já não sabe como chegará em casa para encarar, olho no olho, seus filhos, sua mulher e os agregados que lá estão em visitas longitudinais. Ele se sente acusado, mas não culpado. Acusado porque não consegue dizer ao Presidente que não adianta culpar o mordomo pelo assassinato que ocorrera onde ele pisa; sente-se prisioneiro das circunstâncias de propinas e privilégios daqueles que roubam, escondem o dinheiro na cueca e se dizem vítimas da insegurança. Sente-se acuado pelos que, sabendo que são responsáveis pelo sangue que escorre no tapete da sala e encontra o chão de madeira ilegal, sempre arranjam culpados pelo assassinato. José Roberto é brasileiro, mordomo!

 

Sugestão de Trilha Sonora: O MUNDO É UM MOINHO

Artista: CAZUZA

Autor: CARTOLA [AGENOR DE OLIVEIRA]

Álbum: PRECISO DIZER QUE TE AMO: TODA A PAIXÃO DO POETA

Data de Lançamento: 2002

Crédito de Imagem: Pinterest



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