DEMOCRACIA: ‘SERÁ SÓ IMAGINAÇÃO’?
JANUÁRIO, Sérgio S.
Mestre em Sociologia Política
Aos leitores: não há neste artigo quaisquer juízos de valor com referência à política, apenas esforço analítico sobre os tempos políticos atuais. Compreender é procurar entender.
Os anos de 1960 e 70 foram importantes demais para nossa história recente. Ali a juventude teve um compromisso de luta, de viver intensamente a política no cotidiano. Na arte, na imprensa, na vida de todos os dias, o tom natural tinha acordes de enfrentamentos em nome da democracia [que era a forma de identificar a ditadura e menos o conteúdo da democracia]. As letras das músicas eram forjadas a “despistar” a censura e a erguer a postura de luta.
Os anos de 1960 e 70 formaram um caldeirão efervescente de cultura e luta políticas. Seus representantes eram indivíduos, e alguns grupos musicais; os festivais nacionais da canção eram o espetáculo artístico de extrema relevância e dali se formavam LPs. Um requinte, uma grande aventura. Neste tempo havia uma geração amadurecida para a luta política feita de fina estampa.
Na década seguinte, num tempo de distensão da ditadura e de abertura para a democracia [ainda sem muito conteúdo para formar sua própria identidade] a geração de jovens, resultante do período anterior, teve nas mãos a ausência da ditadura. E, para os anos seguintes, a responsabilidade da construção da democracia. As bandas começaram a aparecer e a responder a esse apelo.
De “Legião Urbana”, “Expresso Rural”, “Abóboras Selvagens”, “Inimigos do Rei”, “João Penca e seus Miquinhos Amestrados”, “Kid Abelha e os Abóboras Selvagens”... passamos a cantar a liberdade de poder expressar nossas angústias sem rebolar em disfarces. Ao mesmo tempo declaramos nossas angústias e dificuldades de construir a democracia. Dos nomes das bandas de rock às letras das canções [“Será” da Legião Urbana, com o brilhantismo de Renato Rocha no contrabaixo, é um excelente aporte para se compreender este tempo] ficam as declarações sobre a liberdade meio sem rumo.
Também os festivais de música, que deflagravam a contemplação pública da arte, foram substituídos pelo “Rock in Rio - 1985”, apropriadamente representante da abertura do Brasil ao mundo. Formou-se uma geração incapaz de compreender as décadas anteriores e sem saber muito bem o que fazer com a liberdade conquistada. Ainda assim, o rock serviu para unir as pessoas ao redor de uma experiência sempre coletiva.
Nos anos de 1990, proclamada a Constituição, fixada a decisão política pelo voto direto, a liberdade de expressão e de imprensa, surge uma geração de indivíduos, num estouro de “cada um, cada um”. As músicas passaram a servir para o consumo individual, a competição de mercado abriu as portas para a profissionalização extensa e as universidades se reproduziram em todos os cantos. Década de grande transformação política e econômica [URV-Plano Real e Reeleição-Lei de Responsabilidade Fiscal], que reposicionou o Brasil no mundo.
Mas ainda sem saber o que fazer com a democracia, o individualismo se camuflou de autoritarismo, e o personalismo político se revigorou como o “iluminado para nos salvar da peste”. Passo a passo seguimos para o tom seguinte sem compreender nossa própria história e nossas gerações anteriores. Aberta as portas da democracia, ainda não sabemos o que fazer com a liberdade que ela [a democracia] nos reserva. Democracia sem cidadania, posto que o eleitor, no Brasil, é aquele que vota e não se converte em cidadão. Como eleitor é incumbido de registrar seu voto e esperar quatro anos se passarem para fazer um gesto de revanchismo e de vingança.
O eleitor parece não reconhecer a luta pela democracia, não se constrói como cidadão e, por consequência, não é capaz de acreditar em um Estado para defender a cidadania ao invés de favorecer pessoas especiais porque eleitas. Os eleitos não promovem a cidadania pela força do Patrimonialismo, ocupando todos os espaços do Estado com cargos criados para seu privilégio e reivindicando todo o recurso possível para sua perpetuação.
De cá e de lá nossas mudanças foram importantes na estabilidade econômica [anos 90] e nas políticas de inclusão social [anos 2000]. Porém, a política tem servido para salvo-conduto de privilégios e não para dar conteúdo à democracia e sua irmã siamesa: a cidadania.
Precisamos compreender nossa trajetória e as razões que nos fazem andar na história para que, entendendo a forma de andar e os caminhos trilhados, possamos caminhar com escolhas razoáveis e passos firmes. Mudado todos os cenários, estamos na luta de um grupo contra o outro, procurando a eliminação bélica do adversário. A diferença é que a arte musical é indiferente à política.
Queremos agradecer a cada um que nos prestigiou neste ano com a leitura de nossos artigos. Não são matéria sobre a verdade, mas apenas e tão-somente uma possibilidade de interpretação por argumentos e menos por preferências pessoais. Novamente, muito obrigado. Voltaremos no próximo ano, logo após o carnevale. Que tenha valido a pena para você!
Natal em paz e anos seguintes de cidadania!
Música: Tom Natural
Artista: Expresso Rural
Álbum: Nas Manhãs do Sul do Mundo
Data de lançamento: 1983
Crédito da Imagem: Pinterest