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O REINADO DO TEMPO

JANUÁRIO, Sérgio S.

Mestre em Sociologia Política

 

Neste ano que se foi [2020] como areia fina entre os dedos, que passou num encurralado tempo em máscaras, em desalentos, em diáspora, o que resta é o consolo do aprendizado possível. Para isso, é necessário sair de suas próprias verdades, reprodutoras do tempo parado, estagnado, emburrecido.

A verdade que nos instrui somente é aquela capaz de ser superada, reparada, revista. Se você tem a verdade indiscutível de nada mais valerá quaisquer conhecimentos da ciência, da filosofia, da arte. Depois de você e sua verdade, fechem-se as universidades, flagelem os livros, queimem as bibliotecas.

Os tempos que nos empurram para o dia seguinte somente poderá ser para aqueles que não estão prontos, para os inacabados, para os incompletos. E em política, nestes períodos de transição, surgem os salvadores e suas verdades. É próprio da transição que a sabedoria e o conhecimento deem lugar aos incautos acusadores dos desiguais como inferiores.

Se as vidas negras importam é porque sua trajetória foi destacada como subalterna, ainda que negros contribuam para esse fenômeno de nossas histórias. É a história de escravidão e de trabalhos forçados, como se já tivessem nascidos com uma condenação, que justifica a defesa da igualdade. A escravidão se revoga por decreto, mas a discriminação não.

Se a defesa de uma população, das pessoas de qualquer existência social ou política, é dever de seu líder [ainda que alguns a desempenhem apenas pelo cargo institucional], então cabe ao líder tecer o tecido de união, de conjunção. Se o líder lidera os já convencidos, se seus discursos são orientados aos aplausos antecipados, então usa o bisturi para separar. Cria, como um coveiro, a falange de fantasmas com quem tem que lutar.

Como Dom Quixote, de tanto viver fora da realidade que o constrói, exclui de si a razão e passa a criar os próprios monstros monstruosamente monstruosos para se manter como cavaleiro, como guerreiro. Mas não seria nada sem seu seguidor, Sancho Pança, que apesar de reconhecer as desventuras de “seu líder”, lhe confere amizade e lealdade em troca de seus próprios interesses.

Os tempos que transcorrem nossa cara todos os dias, já não se importam conosco, nem nunca se importaram. Os tempos se vão. Se nos agarramos a ele para estarmos melhor ali em frente, é preciso condenar a verdade pessoal e ceder obediência ao bom debate, à discussão racional, ao argumento honesto. É preciso encarar no outro a diferença que me faz progredir no tempo, que me melhora na fala, que me faz procurar, cravando as unhas sobre o peito, a minha própria incompletude, a vitalidade do aprendiz que aprende com a descoberta [Eureka de Arquimedes].

Os tempos que nos virão, ano após ano, somente poderão testemunhar nossa felicidade se pudermos reparar nossas certezas e verdades, e nos colocarmos à disposição para mudanças. Daí nasce o amor ao outro. Outro diferente que me ensina, e não desigual que, por isso mesmo, deve me obedecer.

Feliz próximos tempos!

 

Sugestão de Trilha Sonora: JOKERMAN

Artista: CAETANO VELOSO

Álbum: CIRCULADÔ VIVO

Data de Lançamento: 1992

Autor: BOB DYLAN

Crédito de Imagem: Pinterest



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