SOBRE PREFERÊNCIAS IDEOLÓGICAS E HISTÓRIA POLÍTICA
JANUÁRIO, Sérgio S.
Mestre em Sociologia Política
Entre as variedades de definições, a Ideologia nos remete a formas de simplificação e falsificação de realidades que transformam fatos históricos gerais em escolhas individuais. Das ideologias retiramos nossas preferências pessoais e realizamos nossos juízos de valor como se fôssemos os julgadores das coisas e dos fatos: uma espécie de Ministro da Suprema Corte a decidir a História.
Ideologia, por definição, está relacionada a crenças e valores políticos, e está envolvida em doutrinarismos, dogmatismos e passionalidades. Por seu caráter, a ideologia está associada a interpretações desviadas dos fatos históricos, uma forma de estabelecer referências que não se traduzem em realidades históricas, políticas ou sociais: um dogma. Na ideologia, as pessoas falam e os fatos são encapuzados para caberem nas preferências pessoais dos defensores de um posicionamento qualquer.
Como contraposto podemos recorrer à História como ciência do acontecido, que faz com que os fatos e seus entrelaçamentos narrem os fenômenos sociais, políticos e culturais. Como ciência se assegura em métodos que procuram evitar as preferências pessoais, e mesmo ideológicas, e procura levantar fatos e ocorrências capazes de gerar interpretações sobre períodos fundamentais da vida em sociedade. A História não se permite condicionar as compreensões dos fatos por preferências individuais para selar um conteúdo ideológico. Para esta ciência, os fatos falam e os cientistas interpretam. E é a controvérsia e o debate que faz que se aperfeiçoem as formas de se entender o passado, ao contrário da imposição de um valor. Por cátedra, é assim que a ciência se desenvolve: pela crítica que as interpretações recebem. A crítica é amiga e muito bem-vinda.
E é baseado em interpretações da História recente do Brasil e da América Latina que podemos afirmar que o processo de Ditadura Militar ocorrido no Brasil e em muitos países da América Latina instituem e instruem algumas formas segundo as quais podemos falar do Brasil durante o período de 20 anos a partir de 1964.
Na Roma Antiga o dictator era autoridade legítima, reivindicada como necessária em períodos de crises, mas com prazo curto e pré-estabelecido de existência. Quando nada parecia funcionar ou quando aparentemente a política tivesse trilhado caminhos cujas soluções não poderiam ser apresentadas pelos mesmos modelos ou governantes, então um dictator se tornava necessário.
Na ditadura moderna, porém, o poder é tomado por Golpe de Estado e sua manutenção apresenta um conjunto de características históricas bem delineadas pelas ciências sociais: quando não há leis e normas para fiscalizar os governantes e seus atos e, por consequência, há ausência de limites legais na ação dos governantes; quando a autoridade individual está acima das leis e das instituições [algumas impedidas de funcionar ou funcionando por associação ao poder ditatorial]; quando há ausência de formas de sucessão governamental com participação ampla da população e de modo que abranja as diversidades existentes na sociedade; quando a obediência ou resistência dos governados se estabelece em virtude do medo ou do terror. Se todas ou parte dessas características se encontram em um período político temos um estágio ditatorial.
Tudo isso ocorreu no Brasil entre 1964-1984 [ou -1964-1989 na medida em que tivemos eleições livres apenas em 1989] e é parte importante na nossa formação política, social e cultural. A ditadura de caráter militar não pode ser desconsiderada e, como fenômeno político e social, precisa ser interpretada pelos fatos políticos e sociais que em realidade ocorreram. A educação dos filhos com liberdade plena [aquela liberdade pelas quais os pais lutavam em tempos ditatoriais e que formaram indivíduos que não entendem os limites da vida social]; a autoridade machista revestida de controle e poder; A elaboração de uma Constituição Federal organizada contra a ditadura, com amplos direitos políticos e sociais sem consequentes deveres políticos e sociais e cultuada de privilégios de castas [costurada e revista com emendas de todos os tipos e lados]; as educações familiares de que devemos fazer as coisas de certo modo “porque senão a polícia pega”....
Não é uma preferência pessoal, mas uma ocorrência histórica que fundamenta hoje nosso jeito de ser e de estar. Não é uma perspectiva de julgamento, mas de interpretação. E para todos aqueles que preferem contar a história por ideologias, a compreensão da vida atual estará mascarada pela preferência desviada das narrativas dos fatos, incapaz de compreender a si mesmo em sociedade. Afinal, os fatos, para a ideologia, que se ajustem às preferências! Impor uma interpretação por preferências ideológicas é próprio dos efeitos de comportamento ditatorial.
É importante lembrar e compreender, para não se repetir. A História, ciência do ocorrido, deve estar viva hoje para não refazer os mesmos limites amanhã. Somos fruto de nossas trajetórias sociais, políticas, culturais...
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